Ensaio de uma Crítica do Cristianismo




“Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O ‘Evangelho’ morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: ‘más novas’, um Dysangelium(1).

É um erro elevado à estupidez ver na ‘fé’, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos.

O ‘cristão’ – aquele que por dois mil anos passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda sua ‘fé’, foi apenas governado por seus instintos – e que instintos! – Em todas as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás de quais os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos... Eu já denominei a ‘fé’ uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé”, mas se age de acordo com os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer coisa que sequer toque a realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade como força motivadora, como único poder de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, há um erro, por exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a repugnância as deixar (– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos cristãos: talvez por causa desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo planeta chamado Terra mereça olhar divino, uma demonstração de interesse divino...Portanto, não subestimemos os cristãos: o cristão, falso até a inocência, está muito acima do macaco – uma teoria das origens bastante conhecida(2), quando aplicada aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...”.




1 – Um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe este vocábulo angelium (cuja origem vem do grego e que significa “nova”, “notícia”) fazendo oposição com os prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa notícia”). (Pietro Nasseti)

2 – Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do

homem. (Pietro Nasseti)




Texto retirado do livro: O Anticristo de Friedrich Nietzsche

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