Por Danilo Corci
Metafísico ou empírico, o medo é uma raiz que cresce vigorosa pelo imaginário artístico da cultura ocidental, seja na música pop ou até no ensaio fotográfico de Joshua Hoffine.
“O jovem caminha sem medo por aquela linda paisagem. A força da vastidão o empurra um pouco mais a frente. O penhasco é o seu limite. Dá um, dois passos. O terceiro para ficar ainda mais próximo ao infinito. Move o pequeno aglomerado de terra em que pisou, criando a instabilidade que o levou a contemplar, durante alguns segundos, aquela imensidão sufocante abaixo dele. Ali percebeu sua finitude, viu o medo de frente. E com o medo, descobriu o significado do Belo e do Sublime.“.
Grosso modo, a pequena história acima resume uma das mais fascinantes idéias do filósofo metafísico alemão Immanuel Kant (1724 – 1804) de como o medo é uma grande força motriz para a descoberta do que é a verdadeira beleza; uma beleza que vem das entranhas, do fígado, para ser aplicada à vida, uma beleza que nasce do sentimento mais profundo de medo. Fugindo da Filosofia e entrando em outro campo do conhecimento humano, a Psicologia, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1865 – 1961) acreditava que o imaginário era um repositório codificado em que a única possibilidade de armazenamento das informações culturais era fruto também de uma visceralidade, mas de uma maneira diferente do que pensava Kant. Se para Kant o medo era quase metafísico, para Jung o sangue e o solo eram as questões fundamentais – ou a raça, para ser mais explícito. Assim, era possível encaixar a religião nessa codificação, tornando-se evidente que as narrativas que se repetem em todos os lugares, sejam mitos, rituais ou evocações, são de certa maneira apenas o medo da morte sendo estruturado em histórias diversas – mesmo as mais felizes, de maneira quase empírica.
De fato, o medo é universal, seja metafísico ou empírico. As histórias dos jumbees haitianos, por exemplo, são completamente distintas do Doppelgänger alemão, mas a essência primitiva está ali: a contemplação do medo da morte nos dois casos. Quando transpomos isso para a criação cultural mundial, os exemplos abundam.
Um dos exemplos mais notáveis está na música pop. Em 1933, o poeta László Jávor (1892 - 1963) e o músico Rezsõ Seress (1889 - 1968) compuseram “Szomorú vasárnap”, uma pungente canção sobre a morte da amante e a contemplação direta do suicídio. Mas foi Billie Holiday (1915 - 1959) quem espalhou o medo com sua versão “Gloomy sunday”, de 1941. Supostamente, a canção era tão bela e assustadora que desencadeou uma onda de suicídios nos Estados Unidos.
Mas, além de Billie, duas outras assustadoras figuras transformaram o medo da canção húngara em pura arte. A primeira delas foi Lydia Lunch que, em 1979, verteu toda a poesia da música em uma versão de piano e voz capaz de congelar até os mais incautos corações. Não à toa, sua versão foi carro-chefe na trilha sonora do não menos sinistro A bruxa de Blair (The Blair witch project, 1999). Nunca a apreciação da morte foi tão bela e sublime.
A universalidade do medo da perda do amor e da devastação advinda fica ainda mais evidente na voz de perturbadora Marianne Faithfull, cuja versão de “Gloomy sunday” nos remete ao início deste texto, à contemplação completamente desesperada de uma beleza esmagadora. O medo, na voz de Faithfull, é praticamente a redenção necessária para a criação artística desta versão de 1998 e parte integrante do álbum A stranger on Earth.
Outros dois que se aventuraram, em diferentes linguagens, no primordial instinto humano foram Hal Hartley e Chuck Palahniuk. Hartley levou com No such things, de 2001, ao cinema o medo divino e científico. Escondido nos rincões da Islândia, uma criatura imortal que presenciou a criação do Universo sevicia-se dos locais caso não tenha o que quer: bebida. Uma jornalista consegue, então, levá-la aos Estados Unidos onde será estudado por biólogos e geneticistas em busca da chave da imortalidade. A fúria deste ser com ares de Deus do Antigo Testamento serve de contraponto ao avanço tecnológico da Ciência, e assistimos, impassíveis e amedrontados às discussões filosóficas sobre onde está o controle de nossas próprias vidas: no etéreo e sublime ou na aspereza bela da racionalidade. Sem apelar para derramamento de sangue ou assassinatos em massa, Hartley expõe a nossa cegueira em relação ao nosso próprio destino de seres vivos, ou seja: a morte inexorável.
Já o hardcore Palahniuk, mente doentia por trás de Clube da luta, vai ainda mais fundo em Cantigas de ninar, livro que pelo título invoca inocência. Não se iluda: a inocência passa longe. As tais cantigas de ninar fazem parte de um livro com trezentas cópias que, quando os pais lêem para seus filhos, faz a morte aparecer imediatamente para os pequenos. Não precisa ser mais universal do que isso. Palahniuk retira do medo crucial da perpetuação da espécie e da preservação da descendência seu sumo de criação.
E a inocência é um prato suculento para extrair o medo, que o diga o fotógrafo norte-americano Joshua Hoffine. Retornando mais uma vez a Kant, Hoffine trabalha com sensação muito próxima do Sublime, usando como ferramenta elementar o medo. Seu trabalho After dark, my sweet é tão assustador estética quanto culturalmente. Como um conto de fadas moderno, ele explora o medo infantil como arte e, por intermédio dele, os medos universais contemporâneos. Seu ensaio rasga de vez com a inocência das crianças, mas também perturba por ser a representação direta da perda da inocência da civilização ocidental pós 11 de Setembro e, por que não, da crise financeira que tem assolado o mundo.
Seu trabalho resume de maneira escancaradamente explícita que as coisas mais sutis escondem um lado perigosamente sinistro, se olhado com atenção, deixando os tabus culturais para depois. Hoffine define: “Atualmente, nos Estados Unidos, estamos vivendo a Era do Terror. Estou interessado em explorar a natureza de nossos medos e o papel que eles desempenham em nossa cultura. Meu trabalho pode ser mais repugnante do que místico, mas espero que tenha algum mérito social.”. E, se o medo é nossa ferida aberta nos anos 2000, é óbvio que as todas as expressões artísticas vão recrudescer. Contudo, longe de um ambiente festivo, serão paridas pelo Belo e pelo Sublime.
Fonte: Revista Carcasse

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