Os donos de Jesus

viviany (17)Respostas à pergunta “o que é o homem?”, tão atrativas para os modernos, se tornaram sem graça para os contemporâneos. O Humanismo se desgastou, é claro, e isso deu um tom démodé à pergunta sobre a tal da “natureza humana”. Além do mais, parece que há uma resposta no ar, talvez não explicitada, mas que todos nós sabemos e nela acreditamos: “o homem é o animal trans”. 

Os animais são o que são, mas o homem trans… Transita, transmuta, transforma-se, transmigra, transparece e transborda. Só o gosto pela transferência nos marca, diz Sloterdijk. De todos os animais o homem é o único que pode ser mulher. E o faz sem roubar o lugar da mulher, o que lhe dá uma dignidade sem par. O homem pode ser mulher e sendo mulher pode não ser santa, mas santo. Não é interessante? Pode ser Jesus.

Essa capacidade de dominar a transformação da matéria, quase como que um mágico que não faz mágica, pois efetivamente muda a realidade sem truques, deu o que Viviany precisava para ser Jesus por um dia e ressuscitar no terceiro, como ela mesma afirmou em vídeo fantástico. Ei a definição de homem: o animal que vai ao teatro. Viviany foi ao teatro e lá, não contente em ver a peça, a montou para outros e para si mesma, transmutando-se em Jesus. Transferindo-se! Crucificou-se na peça e na opinião pública reacionária. Mas, o mais incrível, é que nisso só fez o que já vinha fazendo, junto com todos os outros da “grande família”, o de estar na cruz diária.

As pessoas que se revoltaram com Viviany o fizeram por motivos nada motivantes, e um deles é mesquinho, nada humildade e até perverso: são pessoas que compraram os deuses, no caso, o deus Ocidental de maior “ibope” no momento, Jesus. Compraram? Mais ou menos. Algumas só roubaram. Tomaram posse. Cercaram o corpo de Jesus como quem, como Rousseau disse, cercou a terra pela primeira vez e disse “isso é meu”. São pessoas que cobram de outros o “direito de imagem” de Jesus. São os que querem cobrar impostos pelos “uso de Jesus”, uma vez que só sabem usar e descartar coisas. Os conservadores se acham empresários de Deus. O homem verdadeiro, o trans, não pode usar a imagem de Deus, ela tem dono. Dono ilegítimo, que são os das “famílias de bem”.

Todavia, acontece que o teatro, principalmente o de rua, não obedece ninguém. E de rua ohomem trans entende. Viviany foi Jesus porque é seu direito. Os “homens de bem” podem introduzir o dedo no ânus de suas almas e gemerem, protestarem, gritarem. Não podem desfazer o que já fizeram. Sãos eles que crucificam gente como Viviany e, por isso, são eles mesmos que prepararam e legitimaram Viviany. São os homens das “famílias de bem” que matam gays, travestis, lésbicas, transgêneros, afeminados etc. Muitas dessas pessoas fazem parte daquele tipo clássico: querem diminuir a maioridade penal exceto para seus filhos, não querem políticas de cotas ou qualquer benefício trabalhista para outros mas não titubeiam em pegar tais coisas para si mesmas, caçam pedófilos enquanto abusam dos filhos e filhas das seus empregadas domésticas, batem panela contra o governo porque não querem escutar nada uma vez que também não sabem falar, só grunhir. Não raro, pedem “intervenção militar para acabar com a corrupção”, pois fingem não saber que Maluf e Marin vieram do regime militar. São pessoas que se dizem de direita e agora agem igual à esquerda mais ignorante no boicote à Globo, ou contra Jô Soares ou contra as novelas da TV. Não sabem ler direito, mas compram a Veja e elogiam Pondé e coisas do tipo. São leitores analfabetos de textos feitos por gente que diz muito mais do que sabe. Por fim, querem andar armadas, pois acreditam, como tolos, que poderão se defender de um ataque de algum ladrão. São pessoas que adoram o “realismo”, mas vivem no mundo da Lua. Caso a sociedade viesse a funcionar como dizem que gostariam, tudo ficaria inviável para todos, inclusive e principalmente para tais pessoas que, não raro, não estudaram, não possuem bons empregos e são campeões – campões de ressentimento.

Viviany crucificou-se politicamente. O arpão do soldado romano lançado contra ela desta vez não atingiu o peito de Cristo, passou longe e foi espetar a consciência da nação. Viviany inaugurou uma nova senda na Teologia. Após Viviany cabe discutir no campo dos assuntos sobre “religião e comportamento” esse tema incrível, o dos donos de Jesus.


o cabaré com Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo
http://ghiraldelli.pro.br/

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