Versão libertina do gerúndio: o que não quer compromisso



Ao chegar em casa, irritada com o atraso na entrega da revista da qual sou assinante, liguei para a Central de Atendimento ao Consumidor. Além de esperar “horas” ouvindo enfadonha musiquinha, a atendente me veio com um “vamos estar providenciando” e outro “a senhora vai estar recebendo” além de outros incontáveis e corteses gerundismos.
Afinal, ela está providenciando e eu estou recebendo (agora) ou ela vai providenciar e eu irei receber (depois)? Na verdade estaria mais para um “desculpe senhora. Não posso dizer que resolverei, pois sou ‘simples’ atendente! Porém, devo tranqüilizá-la, jamais poderei dizer que não resolverei, pois sou atendente!” Mas para que tanta sinceridade com tamanho paradoxo, não é?
Cancelei minha assinatura. Não suportei tamanha incerteza. E, também, eu nem gostava muito daquela revista mesmo...
O gerundismo ou a chamada “linguagem de secretária” caracteriza um vício de linguagem. Uma tentativa de não estabelecer compromisso com o interlocutor, deixando-o, assim, apenas com a perspectiva de que o que foi falado se concretize.
Essas expressões são diferentes, porém, do gerúndio propriamente dito e de orações com estruturas iguais às do gerundismo—sejam elas, vou estar + gerúndio—mas que são usadas em um contexto apropriado.
Sendo assim, as afirmações “estou escrevendo” e “esta noite vou estar escrevendo o meu livro” não constituem vícios, estão, sim, usadas de forma conveniente, já que indicam que o processo verbal está em andamento e que a ação vai ser praticada durante muito tempo (durante “esta noite”), respectivamente.
Estão na mira dos gramáticos, não qualquer uso do gerúndio, mas aqueles inadequados ao contexto em que se inserem, seja por conta da tentativa de uma hipercorreção da fala, pela necessidade de maior impessoalidade no discurso, ou pelo crescente distanciamento entre os participantes de um diálogo. Pois é Drummond, “já não há mãos dadas no mundo, elas agora viajarão sozinhas sem o fogo dos velhos contatos”. “Mas viveremos”... Se o gerundismo permitir, claro.




Danielle de Souza Gomes
é estudante de Direito no Unipê

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