Quando começam a dar os primeiros passos na leitura sobre pedagogia, os homens de esquerda e os liberais, apesar de suas divergências políticas, chegam a alguns lugares comuns. Um desses pontos comuns é a posição a respeito da “matriz curricular” da educação dos jovens. Boa parte deles tende a negar validade ao que Platão e Augusto Comte defenderam. Eles se encantam com a idéia de “fim das disciplinas”, negando o que os gregos e o positivismo aconselharam. Querem, antes disso, a institucionalização na escola de ou “áreas do saber” ou “áreas de interesse”. O que eles não sabem é que esse assunto é sério
Sim! É o tipo do assunto sobre o qual é aprazível falar, porém, é algo que não deve ser proposto, nem sequer mencionado, quando se está em uma situação como a nossa. Nossa escola, montada em moldes tradicionais, não está fraca, ela está simplesmente em estado de decomposição. Mexer na sua coluna vertebral, agora, em uma sociedade em que a educação não é um valor importante, pode ser simplesmente o golpe fatal em nosso Ensino Médio. É o que o MEC parece não ter notado, ainda, ao propor essa novidade que ficou velha (Veja a notícia aqui).
Vou lembrar um pouco da trajetória dessa idéia de mudança da organização da “matriz curricular”, para então chegar ao que avalio como perigoso nessa nova investida do MEC.
1. História
Os liberais, em geral os mais ousados, tendem a seguir os preceitos do pragmatismo de John Dewey. Segundo essa doutrina, o que comanda o ensino não é o intelecto, e sim a motivação dada pelo interesse, pela curiosidade do aluno, então, a relação ensino-aprendizagem deve começar não a partir de disciplinas, mas a partir de um meio ambiente plural, rico, e deverá gerar condições para os estudantes formularem problemas. A matéria da educação é o problema, sobre o qual se aplica o “método científico”. Portanto, os assuntos separados em disciplinas, segundo a visão tradicional, deixam de existir para a nova matriz curricular. As divisões tradicionais como “biologia”, “filosofia”, “sociologia”, “química” etc. perdem espaço para o recorte próprio do aluno, segundo sua curiosidade gerada no ambiente escolar que, então, deve ser um campo de reprodução da “vida”.
Dewey e outros propuseram esse tipo de formulação, na transição do século XIX para o XX. Em parte, Dewey pensou nisso associado à idéia de “escola ativa”, e foi assim que tal ensinamento pedagógico ganhou a história. Não é possível dizer que tal mudança teve sucesso prático, mas, certamente, passou a contar como o conteúdo mais divulgado na literatura pedagógica do século XX.
Na esquerda, esse tipo de pedagogia conquistou Lênin e sua esposa, Krupskaia, e instauração dessa proposta inovadora foi tentada no início da Revolução de 1917. Algo parecido com a proposta de Dewey foi feito, então, com o nome de “método dos complexos”. Da prisão na Itália, Gramsci escreveu aconselhando algo parecido, mas para os jovens mais maduros, não as crianças. Nesse caso, não era propriamente o “método dos complexos” de Krupskaia ou o “método dos problemas” de Dewey, e sim uma fórmula que lembra os nossos seminários universitários, quando bem feitos.
Na Inglaterra, A. S. Neill radicalizou tal proposta, tornando-a mais libertária. Foi assim que funcionou a Escola Summerhill. Em outros lugares o espírito da união entre experiência e trabalho, defendida por Dewey, originou a proposta da “escola ativa” de cunho socialista, e um bom exemplo desse empreendimento foi a idéia de Celéstin Freinet, que centrou a atividade na construção do “jornal escolar”.
Em termos gerais, essas várias inovações ganharam o nome de “Movimento da Escola Nova”, e seus adeptos ficaram conhecidos, em especial no Brasil, como “escolanovistas”.
Tudo isso passou para a história da pedagogia. No Brasil, boa parte do “Movimento da Escola Nova” defendeu o ideal pedagógico proposto segundo as variações ditas acima. Entre nós, aliás, até mesmo os não liberais aceitaram a idéia. Conservadores ligados à Igreja Católica chegaram a tentar criar um “escolanovismo católico”. Mas, foi pelas mãos dos que apostaram na educação pública que essas idéias realmente se propagaram. A Escola Parque na Bahia, criada por Anísio Teixeira, inicialmente era uma experiência desse tipo. Nos anos 50 e 60, os “ginásios vocacionais” e os “colégios experimentais” guardaram essa herança.
Essas experiências foram encerradas pela Ditadura Militar, em especial por um intelectual que atuou na burocracia da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, e que depois se fixou na Faculdade de Educação da USP, José Pires Azanha.
Azanha nunca confessou que fechou aquelas escolas por questões políticas, pelo fato delas conterem muitos “professores progressistas”. E, de certa forma, temos de acreditar nele (ainda que só em parte). Pois, de fato, em seus livros ele sempre se indispôs, argumentando tecnicamente, contra o tipo de liberal que não seguia Hanna Arendt no ataque que esta desenvolveu ao “culto da infância” e da “experiência”, presentes no ensino americano, e devedor do “escolanovismo”.
É interessante notar que, depois, nos anos oitenta, no pólo oposto ao de Azanha, Dermeval Saviani, munido do marxismo, também atacou a Pedagogia Nova. É claro que as razões de Saviani eram outras. Ele dizia, então, que a pedagogia vinda de tal movimento valorizava o processo de aprendizagem antes do que a própria aprendizagem de determinados conteúdos. E sendo os conteúdos o que deveria, de fato, se apresentar como “socializado para todos os jovens”, a Escola Nova teria tido um papel não tanto progressista quanto até então era a ela atribuído. Pois, no frigir dos ovos, segundo Saviani, os jovens eram desapropriados, por tal pedagogia, dos conteúdos necessários para suas vidas como autênticos cidadãos.
Aliás, nesse período, Paulo Freire havia voltado para o Brasil, pela Lei da Anistia, e foi então que pudemos participar de um rico debate pedagógico entre as esquerdas. Uma parte dos marxistas resolveu fustigar Freire, dizendo que sua “pedagogia libertadora” estava reproduzindo o que havia de falho no “escolanovismo”, ou seja, uma ênfase exagerada no “não-diretivismo” e, portanto, uma incapacidade de lidar com o que seria o imperativo de uma educação socialista, a chamada “socialização do patrimônio cultural da humanidade”.
Paulo Freire, por sua vez … Bem, não vou recontar tudo aquilo que já coloquei em vários livros (o mais recente: Filosofia e história da educação brasileira. São Paulo: Manole, segunda edição revista e ampliada).
Eis aí, em um máximo resumo, o que se pode falar sobre o assunto que, agora, volta à cena – o assunto sobre a adoção de “áreas do saber” em nosso atual Ensino Médio. É uma maneira de introduzir o tema, para então poder conversar sobre a proposta atual do MEC (mais uma!) de eliminar do ensino médio as disciplinas e introduzir os estudos por “áreas do saber” ou “campos”.
3. Aprendiz de feiticeiro
Tudo indicava que, mais cedo ou mais tarde, o ministro Fernando Haddad, nas suas leituras em educação, acabaria chegando nisso, ou seja, o encantamento por alguns pressupostos do ideário pedagógico da “Escola Nova”.
Por que eu digo isso? Por uma razão simples: ele fez o caminho da maioria dos que começam a estudar pedagogia no Brasil. Portanto, um caminho bem previsível. Primeiro, lê-se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, e adota-se o discurso da necessidade da “escola pública, laica, gratuita e obrigatória”. Trata-se da adoção de uma postura, em política educacional, que é tipicamente liberal. Mas a esquerda, no Brasil, quando quer se dizer “light”, só tem esse recurso: parar de pensar e começar a repetir fórmulas liberais do passado, que podem ter algum consenso nos meios letrados. O segundo passo, então, não pode ser outro: passa-se da crítica ao que é a matriz curricular tradicional para a adoção de algum discurso em favor da escola organizada por “áreas de estudo”. Isso soa como música para aqueles que, sem muita reflexão, querem a inovação da escola.
Quando Lula começou a falar frases contidas no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, logo vi que Haddad havia tido contato com aquele documento, e começava a fazer circular tais frases no Planalto. Na época, eu cheguei a comentar com amigos: aguardem mais um pouco, Haddad vai passar, na trilha da “Escola Nova”, da política educacional para a pedagogia e para a didática. Não vai demorar muito para ele estar sugerindo que a escola se organize através de “áreas de estudos”. Será a redescoberta do “método dos complexos” pelo marxismo “light” tupiniquim. Dito e feito. Demorou dois anos, mas que o momento chegou, chegou. Parece que Haddad está completando a leitura de alguns livros dados na seqüência de estudos de um curso de Licenciatura em Pedagogia, e então, nessa ordem, é a hora dele começar a fazer discursos “escolanovistas” também no campo pedagógico-didático. Nesse caso, sai de cena Platão e Comte e entra no palco a “interdisciplinaridade sem disciplina”.
A sorte que temos é que o MEC mais fala que faz. Lança idéias novas toda semana, mas não as leva adiante. Caso contrário, nossa educação já teria ido por água abaixo de uma vez. Todavia, meu medo particular não passa assim, tão facilmente. Temo que o MEC possa conquistar algum secretário de Educação incauto e, então, desestruturar o ensino de algum estado por meio dessa reinvenção manca que parece charmosa, uma vez que vem da bela herança do “Movimento da Escola Nova”.
Qual a razão pela qual falo isso? Justo eu, que tenho simpatias pelo pragmatismo americano, sou contra a Escola Nova? Bem, o problema nosso não é este, de ser contra ou a favor. O problema nosso é que a idéia da Escola Nova teve o seu tempo, e isso passou. Ela foi uma reação pedagógica contra uma teoria educacional específica, baseada em uma psicologia que não levava em conta que a educação tem de considerar a as fases de desenvolvimento intelectual e moral da criança e do adolescente. O que a “Escola Nova” tinha para fazer de bom, ela já fez. Ela modificou a mentalidade de muitos professores, fazendo-os olhar para as “necessidades próprias das crianças”. Era isto que ela tinha de melhor para oferecer ao século XX. Mas agora, voltar à proposta “escolanovista”, em um sentido prático de mudar a organização da escola, é um erro que não podemos cometer.
O ideário do “escolanovismo” implica em modificações que, como a história mostrou, talvez nunca poderá ser além do experimento circunscrito, jamais conseguindo ser a regra geral da educação escolar pública. E isso o próprio John Dewey sabia bem. Anísio Teixeira nunca duvidou disso.
Alias, Anísio Teixeira sempre soube que a história da educação brasileira tinha peculiaridades que diferiam bem da história da educação americana. Os americanos viram sua educação crescer a partir da comunidade, da paróquia; nós fizemos um caminho diferente, que foi o de ampliar nossa educação via atuação do aparato estatal centralizado. Os americanos organizaram suas escolas já tendo conhecido, em parte, o “método de ensino mútuo” da Inglaterra, proposto por Lancaster. Nós, diferentemente, tivemos um ensino tradicional centrado na atividade jesuítica e, depois, na expansão escolar do século XX, vimos nossa escola tomar um rumo homogêneo a partir da direção do poder estatal. Por essas e outras razões, inovações escolares nos Estados Unidos sempre foram mais fáceis de serem propostas com chances de reais de sucesso do que aqui no Brasil, ao menos a partir de meados do século XX.
Ou seja, podemos ter colégios modelos em que as disciplinas são abolidas, e então geramos nesses colégios ambientes de estudos que seriam, assim, “campos temáticos” capazes de instigar a curiosidade e gerar problemas. Mas não podemos fazer isso para o país todo, como uma política educacional de institucionalização de uma doutrina pedagógica; pois isso implicaria em termos uma legião de professores formados de outra maneira, uma mudança na legislação que viria a quebrar com a espinha dorsal de nosso ensino público e particular e, mais ainda, um dispêndio de dinheiro que certamente não temos. Na prática, teríamos de ter uma outra cultura de formação pedagógica no Brasil. Não temos o poder de alterar isso a partir de nossas vontades individuais. Não temos condição de entortar nossa cultura pedagógica a partir de decisões do MEC. Não se altera uma disposição quase que antropológica de nossa formação de professores com essa facilidade que o MEC atual parece acreditar que seja possível.
Que meu exemplo fique claro: não vamos deixar de ser o país do futebol, mesmo que o governo gaste bilhões, em todo esse século XXI, tentando nos transformar no país do beisebol. Não é uma questão sobre a qual podemos decidir.
Talvez a doutrina escolanovista tenha sempre que ser fiel ao seu primeiro criador, Rousseau, que escreveu seu O Emílio como utopia negativa, não como proposta pedagógica positiva (aliás, Durkheim não o entendeu, criticou-o achando que se tratava, sim, de uma educação para ser posta em prática!).
Como convencer as faculdades, principalmente agora que o MEC acabou de incentivar uma reforma dos cursos de licenciatura, a gerar um professor preparado para atuar em uma “área do saber”, e não mais em sua disciplina? Ora, essa é uma tarefa tão imensa que equivale a pensar o Brasil do avesso. E o perigo disso, quando lançado assim, por aprendizes de feiticeiro, é que tal coisa ajuda bem a desestruturar o que temos de estruturado, e de não colocar de fato nada de positivo no lugar. Hoje, a maioria de nossos professores de matemática não sabe matemática, imagine um professor desse tipo atuando em uma área em que ele precisa saber ligar com problemas reais não só a matemática, mas as implicações sociológicas e filosóficas da matemática! Dá para prever o caos disso tudo, principalmente quando nos lembramos do salário de um professor do ensino médio e quando nos lembramos que, nessa área, só se sobe na carreira quando se consegue um título para ir para a burocracia, deixando a sala de aula.
A história não se repete, a não ser como farsa. Os marxistas aprenderam tal ditado, não? Pois é! Talvez alguns, lá no MEC, não tenham aprendido. Eis aí o aparecimento do ideário da “Escola Nova” novamente, mas agora, apenas como caricatura. O MEC puxa uma fila de pessoas que, se o estão seguindo nisso, são tão meros curiosos em educação quanto o próprio MEC está atestando a respeito de si mesmo. Isso não vai acabar bem.
Tomara que isso fique apenas no papel, como a maioria das idéias do MEC. Tomara que isso seja como todas as outras idéias vindas do MEC atual, que atropela a imprensa, cada semana, com uma idéia nova. Pois, se para o MEC o que vale é fazer notícia toda semana, neste caso, louvamos que seja apenas isso mesmo.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, http://ghiraldelli.org
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