A marcha da maconha e a privatização das doutrinas




A descriminalização de todas as drogas é a única maneira de diminuir o crime organizado. Todo tipo de “lei seca” gera o gangster e, então, propicia uma deterioração social bem maior que aquela causada pelo vício. Poucos que possuem alguma inteligência e já viram sociedades liberadas, podem negar isso. Então, as manifestações em favor da descriminalização da maconha fazem parte de algo importante, rumo a uma civilização melhor. Essa é a tese.

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O problema é sabermos se não estamos, com tais coisas, tapando o sol com a peneira. Primeiro: vamos liberar a maconha, certo? Mas, o que isto vai causar, realmente, sobre o tráfico? Temos dados para avaliar isso? Ou a marcha que ocorreu esses dias é apenas para que algumas pessoas ricas do Rio não tenham que “subir o morro”? Outra coisa: se a questão não é esta, a de terminar com o tráfico, mas, ainda assim é algo que tem a ver com uma benfeitoria pública, qual é essa benfeitoria? Estamos lutando para gerar em grau crescente medidas liberalizantes, necessárias em uma sociedade com o nosso passado, e que resolve agora seguir por caminhos responsáveis? Bem, mas se é isso, não deveria constar de nossa pauta de reivindicações, também, um olhar negativo diante das medidas proibitivas em relação ao cigarro e em relação à pornografia, que estão na pauta atual. Quais?

Bem, o cigarro está virando quase um crime. Mais um passo, e apesar de legal seu uso se tornará impossível. As pessoas acenderão um “baseado” rindo na cara dos que acenderem um “careta”, que terá de ser apagado imediatamente! Vejam agora que o cigarro foi proibido, agora – pasmem! – em “casas noturnas”.

Por outro lado, o garoto de 16 anos que vier a trabalhar em uma editora, não poderá carregar as revistas dessa editora para a banca, caso elas, mesmo lacradas, contenham material pornográfico. Isso é da nossa lei atual, assinada pelo Lula. A proibição do cigarro é tão atual quanto o fato do ministro do Lula, Carlos Minc, ter participado da “marcha da maconha”.1997-10-22

Assim, parece que estamos cobrindo um santo e descobrindo outro. Nossas ações não estão favoráveis a uma sociedade livre, estamos, de fato, é tentando tornar público apenas gostos privados. Não estamos tentando fazer com que certas práticas privadas ganhem legitimidade para, talvez, se tornarem públicas. Cuidado, se confundimos isso, podemos estar dando passos errados, em favor do autoritarismo, acreditando que temos grande legitimidade para tais passos, e que eles estão sendo dados a favor da liberdade.

Aliás, depois do PT de Martha Suplicy ter feito aquele ataque ao Kassab, na base do preconceito contra homossexualismo, as esquerdas em partidos perderam de vez o monopólio da luta pela liberdade.

Isso que ocorre no Brasil, sobre os gostos privados que saltam para fora da boca sem eira nem beira, é bem diferente da liberalização que quisemos nos anos 60. E quem disser que a realidade é “dialética”, para, com tal observação, tentar me tranqüilizar e, pior, explicar essa nossa conjuntura, eu não vou ouvir, é claro. Quando alguém diz, para explicar algo, que isso é “dialético”, aí o caso não é de maconha, é de vício de heroína a longo prazo – a pessoa não está somente entorpecida, ela emburreceu faz tempo.

Que tenhamos claro o que está ocorrendo: após o “mensalão”, isto é, após o esfacelamento moral do PT, as esquerdas ficaram na situação de atirar para qualquer lado. As ideologias foram privatizadas. Como havia acontecido com a religião. Isso já vinha ocorrendo no mundo todo, mas, no Brasil, a data fatídica para essas coisas ganharem volume foi 2005.

É assim que funciona: quem tem uma religião, e é culto e honesto, não vai a nenhuma igreja sem certo constrangimento e, se vai, é para casamento ou enterro. Quem tem uma ideologia política e é, além de culto, honesto, não vai a nenhum partido. Caso vá, é para cumprir alguma obrigação do serviço, vinda do emprego. E olha que, não raro, ficamos corados ao passar perto da política dos políticos. Mais que outros lugares, o Brasil vive isso agora.

As pessoas que são de esquerda e querem uma sociedade livre, que são cultas e honestas, que não abandonaram suas crenças, não podem mais defendê-las segundo um todo racional organizado. Assim, temos assistido isso, iniciativas que lembram velhas lutas liberalizantes, todavia, agora, levadas adiante sem que se possa dizer delas outra coisa que não o que elas realmente representam: cada um quer que seu gosto privado se torne algo que possa gerar um comportamento que é público. E isso das formas mais desencontradas.

O resultado dessa profusão de vontades individuais como se fossem vontades coletivas é este: tentamos liberar algo sem saber se há consenso para tal, e nem conseguimos, mas de concreto mesmo proibimos algo que sabemos, muito bem, que é pouco razoável proibir. A falta de organização do debate, que é o que ocorreu após Lula ter se tornado, como FHC bem notou, “um político igual aos outros”, é visível: há a vergonha de se colocar como libertário, embora algumas lutas libertárias tenham de ser levadas a cabo. Como não há mais bandeiras coletivas, e como os heróis de ontem viraram os oportunistas de hoje – e o próprio Lula não parece fugir disso – não conseguimos mais colocar o que é prioritário e o que não é como pauta social. Eis aí que um ministro sai na rua pela liberalização da maconha, mas não conseguimos que um outro ministro, que se diz também de esquerda, saia a favor de um piso salarial para os professores que não seja obrigatório para todos e que seja digno (a lei do piso, na prática, está abaixando salários). Nem conseguimos ver os ministros saindo na rua para pressionar Lula a cumprir a lei e fazer com que a área de educação seja contemplada com a porcentagem correta.

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Não quero, com isso, que algum conservador pegue a minha frase acima e diga: “ah bom, o Ghiraldelli está certo, o ministro sai na rua a favor da maconha, mas não sai a favor da educação”. Não é isso! Tomar minha exposição acima como se fosse isso seria não só reacionário, mas burro. O que digo é que não conseguimos mais articular uma luta coletiva em favor de vários itens importantes, verdadeiramente públicos, isto é, que estão sob consenso, enquanto que aqui e acolá podemos participar de uma “marcha da maconha”. Estamos nas ruas, às vezes com muita gente, às vezes berrando novamente palavras de ordem. Mas estamos sozinhos. E talvez até mais tolos que antes. Talvez até de modo hipócrita. Nós, de esquerda, estamos sem rumo. Pois se o rumo é Dilma e tudo que está aí nesse governo do Lula, que é o governo da mentira, quem tem coragem de seguir?

Claro, claro, diante da barbárie do Serra, que hoje é a direita grosseira, ninguém conseguiria não votar na Dilma. Mas eu, faz tempo, não voto mais em ninguém. A democracia também implica em, não tendo partidos e não tendo candidatos, não votar.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo. http://ghiraldelli.org

http://ghiralldelli.ning.com http://filosofia.pro.br

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