O encontro histórico entre o papa Francisco e o líder xiita no Iraque, onde o 'cristianismo está perigosamente perto da extinção

O Papa Francisco se reuniu por 45 minutos com o principal líder religioso xiita do Iraque, o aiatolá Ali al-Sistani

Em seus oito anos de pontificado, as viagens do papa Francisco foram bastante diferentes das dos seus antecessores. Muitas delas não se destinaram aos grandes centros católicos do mundo — Europa, América do Sul e regiões da África.

Ele foi várias vezes a locais onde os cristãos são uma minoria: Tailândia, Emirados Árabes Unidos, Japão e Coreia do Sul.

Agora é a vez do Iraque: acredita-se que na região de Ur (na atual província de Dhi Qar) nasceu Abraão, considerado o pai das três principais religiões monoteístas do mundo (cristianismo, judaísmo e islamismo)
Atualmente, esse mesmo local é o lar de uma minoria cristã que está à beira da extinção por vários motivos, entre eles a perseguição de grupos radicais, como o autodenominado Estado Islâmico.

No que foi o ponto alto da visita, que durará três dias, o papa Francisco se reuniu neste sábado (06/03) com o principal líder religioso xiita, o aiatolá Ali al-Sistani
Este encontro entre as duas religiões foi descrito como "histórico".

O papa Francisco viajou para a cidade sagrada de Najaf, cerca de 160 quilômetros ao sul da capital Bagdá. O local é um centro de peregrinação para xiitas de todo o mundo.

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O aiatolá é uma das figuras mais poderosas do Islã e seus fátuas (pronunciamentos religiosos) levaram muitos muçulmanos a se mobilizarem em 2014 contra o Estado Islâmico.

Em janeiro de 2019, lembra a agência EFE, Ali al-Sistani pediu para investigar os "crimes atrozes" perpetrados por jihadistas sunitas contra algumas minorias na sociedade iraquiana.

Durante o encontro, o papa agradeceu ao aiatolá "por erguer a voz em defesa dos mais fracos e perseguidos, afirmando que o sagrado é a importância da unidade do povo iraquiano".

Ele também destacou "a importância da colaboração e da amizade entre as comunidades religiosas para que, cultivando o diálogo com respeito recíproco, se possa contribuir para o bem do Iraque, da região e de toda a comunidade".

Francisco visitou uma igreja cristã na última sexta-feira (05/03) no Iraque

A viagem pastoral, que começou na sexta-feira (05/03), é a primeira em 15 meses devido à pandemia de covid-19.

A visita foi classificada como de alto risco não só por questões de segurança — estima-se que ao menos 10 mil pessoas trabalharão para que nada aconteça com o sumo pontífice — mas também por preocupações sanitárias: desde janeiro, os casos de infecção com o coronavírus triplicaram no Iraque.

O próprio papa emérito Bento XVI apontou os riscos da excursão: "Acho que é uma viagem muito importante... Infelizmente acontece em um momento muito difícil, o que também a torna perigosa por razões de segurança e pela covid-19. E há também a situação instável no Iraque. Vou acompanhar Francisco com minhas orações", disse ao jornal italiano Il Corriere della Sera.

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Soma-se a essas incertezas o ataque contra bases militares iraquianas que abrigavam tropas americanas na última quarta-feira (03/03).

O porta-voz do Vaticano, Mateo Bruni, destacou que a intenção da viagem é mostrar a proximidade do papa com as comunidades cristãs ameaçadas.

"É um gesto de amor por aquela terra, pelo seu povo e pelos cristãos", declarou.

Mas por que a comunidade cristã residente no Iraque está à beira da extinção?

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Perseguidos por séculos
A viagem, que inclui missa aberta em um campo de futebol, terá em seu roteiro as cidades de Bagdá, Mosul, Erbil, Najaf e Qaraqosh.

Francisco, que teve de adiar seus planos pastorais, sempre indicou a intenção de visitar a região.

"Penso constantemente no Iraque, para onde desejo ir no próximo ano, na esperança de que esse país possa enfrentar o futuro por meio da busca pacífica e compartilhada do bem comum por todos os elementos da sociedade, incluindo os religiosos, e não recuar em hostilidades provocadas por conflitos latentes de potências regionais ", disse o papa, durante uma audiência em 2019.

E essa referência aos conflitos tem um indicador claro: da invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 até 2019, a comunidade cristã no país foi reduzida em 83%.

Nesses 16 anos, os números de cristãos caíram de 1,5 milhão para apenas 250 mil mais recentemente.

Estima-se que pelo menos um milhão deles fugiram para a Europa e os Estados Unidos, devido a conflitos internos causados ​​pela invasão ou pelo deslocamento forçado por grupos islâmicos.

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E o alerta mais enfático sobre a iminente extinção foi feito várias vezes pelo reverendo Bashar Warda, o arcebispo de Erbil — uma das cidades que Francisco vai visitar.

"O cristianismo no Iraque é uma das religiões mais antigas, senão a mais antiga do mundo, e está perigosamente perto da extinção. Aqueles de nós que permanecerem devem estar preparados para enfrentar o martírio", disse Warda à BBC em 2019.

A presença cristã no Iraque é praticamente tão antiga quanto a própria religião: de fato, há muito mais cidades e lugares mencionados na Bíblia que estão localizados neste país do que em Israel e nos territórios palestinos.

Seu ponto de partida histórico pode ser localizado no século V, quando o Concílio de Niceia registrou a presença de bispos da região mesopotâmica.

Em seguida, veio a criação da Igreja Oriental, com fortes raízes na parte norte do Iraque, e o estabelecimento do mosteiro de Santo Elias nas proximidades da atual cidade de Mosul, durante o século.

As minorias cristãs foram perseguidas pelo Estado Islâmico

Em um artigo para o site The Conversation, Ramazan Kılınç, professor de ciência política da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, escreveu que a maioria dos cristãos iraquianos são etnicamente assírios e pertencem à Igreja Oriental, um dos três grandes ramos do cristianismo no Oriente. "A adoração é feita num dialeto do aramaico, a língua em que Cristo supostamente falava."

O professor Kılınç acrescenta que a maior dessas comunidades assírias pertence à Igreja Católica Caldeia, que reúne mais de dois terços de todos os cristãos que vivem no Iraque.

As constantes perseguições religiosas e políticas contra esses grupos aumentaram nos últimos cinco anos.

O bispo Warda resumiu isso em uma frase certamente polêmica: "Há um número crescente de grupos extremistas que afirmam que o massacre de cristãos e yazidis durante esses anos ajudou a espalhar o Islã", disse o reverendo iraquiano.

Existem cerca de 250 mil cristãos no Iraque

Estado islâmico
"Estamos tentando curar a ferida criada pelo Estado Islâmico", disse Karam Shamasha, um dos padres da Igreja Católica de São Jorge, à Agência Católica de Notícias em novembro passado em um vilarejo cristão que fica a 30 quilômetros ao norte de Mosul.

"Nossas famílias são fortes e lutaram pela fé. Mas elas precisam de alguém que lhes diga: 'Vocês se saíram muito bem, mas devem continuar com sua missão'", acrescentou.

Quando o chamado Estado Islâmico invadiu a cidade de Mosul, em meados de 2014, os cristãos eram um dos grupos mais perseguidos pelos radicais.

Após o ataque inicial, que deslocou mais de 125 mil cristãos de suas terras natais, muitos líderes viram isso como "a luta existencial final" para o cristianismo iraquiano.

O Estado Islâmico destruiu vários templos cristãos no Iraque

"Os torturadores confiscaram nosso presente, enquanto procuravam apagar nosso passado e destruir nosso futuro", disse Warda.

O reverendo observa que a destruição do Estado Islâmico foi tão devastadora que agora os sobreviventes não têm como provar quem eram e o que possuíam.

"No Iraque, não há reparação para aqueles que perderam propriedades, casas e negócios. Dezenas de milhares de cristãos não têm como provar que este tem sido seu local de residência e de seus ancestrais por milhares de anos."

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Apesar do desmantelamento do califado instituído pelo Estado Islâmico e de sua influência ter sido consideravelmente reduzida, várias células continuam ativas — houve inclusive um ataque em Bagdá em janeiro que deixou pelo menos 32 mortos — e elas são até uma ameaça à viagem do pontífice.

"Eles estão começando a perder relevância e isso os colocaria de volta no topo. Outros grupos podem ter algumas restrições morais. Mas o Estado Islâmico não tem nenhuma", disse o pesquisador Michael Knights, do Instituto Washington, ao Wall Street Journal.

No artigo publicado no The Conversation, o professor Ramazan Kılınç indica que, entre 2017 e 2019, a administração de Donald Trump forneceu ajuda de 300 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) para reconstruir as cidades e as vilas cristãs das planícies de Nínive, no norte do Iraque, que foram destruídas pelo Estado Islâmico.

É a primeira vez que um papa visita o Iraque.

Caminho para a extinção
Mas os líderes católicos no Iraque estão cientes de que o desaparecimento da religião por ali pode estar próximo.

Warda chegou a uma conclusão amarga sobre o que o futuro reserva.

"É possível que estejamos enfrentando nosso fim na terra de nossos ancestrais. Nós sabemos disso. No nosso final, o mundo inteiro enfrenta um momento da verdade", disse ele.

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O bispo tem criticado especialmente as igrejas na Europa, que ele acredita não terem condenado veementemente a perseguição por medo de serem acusadas de islamofobia.

"Será que um povo pacífico e inocente poderá ser perseguido e eliminado por sua fé? E por não querer dizer a verdade aos perseguidores, o mundo será cúmplice de nossa eliminação?", questionou.

Francisco foi enfático ao dizer que sua viagem tem como objetivo impedir que isso aconteça.

"Eu sou o pastor das pessoas que sofrem", disse o papa a vários meios de comunicação, no último mês de fevereiro.

E Warda espera que a visita do pontífice a possa ajudar nesse caminho: "A presença do papa fará com que muitas pessoas, especialmente os iraquianos, percebam que estamos aqui há muitos séculos", disse recentemente à Agência Católica.

"Os cristãos têm contribuído muito para este país", completa.

O cabaré com a BBCmundo

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